sábado, 22 de novembro de 2014

O SOLA SCRIPTURA NA REFORMA PROTESTANTE.

O  SOLA SCRIPTURA NA REFORMA PROTESTANTE.
Rev. João Ricardo Ferreira de França.
            Antes de fazermos uma análise bíblico-teológica da doutrina do Sola Scriptura se faz necessário analisá-la historicamente dentro da tradição protestante. Pois, todos nós sabemos que “Sola scriptura é um dos princípios fundamentais da reforma Protestante”[1]. É claro que este princípio estivera, de forma embrionária, nos pré-reformadores, de modo particular em John Wycliffe e John Huss, este último apelava sempre para as Escrituras e chegou a dizer aos seus oponentes: “Mostrem-me com base nas Escrituras, e eu me arrependerei e voltearei atrás.”[2] Então, a doutrina da suficiência da Palavra de Deus foi bem mais desenvolvida pelos reformadores. E dentro destas perspectivas procuraremos apresentar uma breve resenha histórica de como isso se projetou na monumental doutrina que conhecemos.
            I – O QUE É O SOLA SCRIPTURA?
         A resposta mais simples e clara que podemos oferecer a esta pergunta é que o “Sola Scriptura ensina que a Bíblia regula a vida em sua totalidade”[3] O Dr. Paulo Anglada nos diz que com a “redescoberta da doutrina da suficiência das Escrituras, os reformadores libertaram o povo de Deus das doutrinas e práticas impostas às consciências  por autoridade meramente humana”[4].
            Ou seja, o conceito que a doutrina encerra é a de que somente as escrituras podem ser senhora da consciência dos homens! Todavia, uma definição ampla e clara do que a doutrina significa é apresentada por Brain M. Schwertley quando diz:
Dito resumidamente, a doutrina protestante do sola scriptura ensina  que a Bíblia (os 66 livros do Velho e do Novo Testamento) é a divina  Palavra inspirada de Deus, e, portanto, infalível e absolutamente autoritativa para todos os assuntos referentes à fé e à vida. Como palavra escrita de Deus contém tudo o que existe da revelação sobrenatural de Deus, e porque cessaram todas as formas de revelação direta (com a morte dos apóstolos e o fechamento do cânon), apenas e somente a Bíblia é a autoridade da igreja. Porquanto a Escritura é clara (i.e., todo ensino necessário à salvação, fé e vida, são facilmente compreendidos pelas pessoas  comuns) não há necessidade de quaisquer fontes adicionais de autoridade para interpretar a Bíblia infalivelmente para a igreja. A igreja (sejam ou não papas, cardeais, bispos, pais da igreja, concílios eclesiásticos, sínodos ou congregações) não tem autoridade sobre a Bíblia, mas a Escritura autoautenticada tem autoridade absoluta sobre a igreja e sobre  todos os homens. Por ser o que a Bíblia é (como já visto), o mister da  igreja é puramente ministerial e proclamador. Todos os homens são  proibidos de acrescentar ou subtrair algo das Sagradas Escrituras, seja  pelas tradições humanas, ou pelas assim chamadas novas revelações do  Espírito, ou pelos decretos de concílios e sínodos. A Bíblia é suficiente e perfeita e não necessita de quaisquer acréscimos humanos. Além do que,  apenas aquilo que é ensinado na Escritura pode ser usado para tornar  cativas as consciências dos homens. [5]

II  –  O SOLA SCRIPTURA REDESCORBERTO: MARTINHO LUTERO - “MINHA MENTE ESTÁ CATIVA À PALAVRA DE DEUS”.
            Martinho Lutero “nasceu no dia 10 de novembro de 1483 na pequena cidade de Eislebn. Seu pai, de origem camponesa livre, emigrou de muito longe para essa cidade” também somos informados que o seu pai era minerador “e que chegou a ficar consideravelmente rico”.[6]  Lutero fora destinado ao direito, este era o plano de seu pai, mas “voltou-se para o mosteiro, no qual, após muitas lutas, desenvolveu uma nova compreensão de Deus, da fé e da igreja”[7].
            Lutero eclodiu a Reforma Protestante quando afixou as suas teses na igreja de Wittemberg; a sua série de estudos teológicos na Carta de Paulo aos romanos o levou para a doutrina do Sola Fide – somente a fé.  Juntamente com seus ataques as indulgências o levaram para Leipzig em Julho de 1519[8].
            No debate que tive lugar em Lipizig Matinho Lutero teve como seu opositor o grande historiador da Igreja Romana John Eck. Este último insistira que Lutero estava defendo as ideias de um herege para a Igreja que era o John Huss. Matinho Lutero retrucava de dizia que não! Depois, de um breve intervalo, Lutero foi estudar as ideias de Huss e ficou surpreso, pois, o que ele estava ensinando era exatamente o que Huss havia também ensinado e a igreja no Concílio de Constança havia condenado tal ensino. [9]
            Lutero chegou a declarar que as Escrituras eram “normas, normans (norma determinadora)”[10] e por isso, ele declarou que a “sua consciência estava cativa à Palavra de Deus”, isso na Dieta de Worms, quando questionado se iria renunciar seus escritos e tratados, então ele prosseguiu dizendo:
Amenos  que ele fosse convencido pela Escritura e pela razão clara, que ele não aceitava a autoridade dos papas e concílios, visto que eles se contradiziam uns aos outros, ele não abjuraria nada. Fazer isso não seria correto e nem seguro. E ele acrescentou: ‘Que Deus me ajude. Amém!’. Em outra versão dessas palavras finais, que pode ser acurada, nós ouvimos dizer: ‘Aqui permanece. Eu não posso fazer diretamente’. Ele falava em alemão e, quando questionado, repetia sua afirmação latim.[11]
            Com essa declaração Lutero surge o conceito da reforma protestante conhecido como o Sola Scriptura. Deve-se ressaltar que a doutrina do somente as Escrituras conforme ensinada por Lutero consistia na “ideia segundo a qual as Escrituras são a única autoridade para o pecador procurar a salvação[...]”[12], em outras palavras, a doutrina da suficiência das Escrituras não afetara a sua concepção eclesiástica e nem litúrgica; todavia, percebe-se que foi graças a esta concepção que a Escritura tornara-se a pedra de toque para a avaliação de toda a doutrina.
III  – JOÃO CALVINO E O SOLA SCRIPTURA.
Existe um personagem na Reforma Protestante que tem instigado a muitos debates entre os eruditos em história, filosofia, educação e homilética – João Calvino certamente é o homem que é querido por uns e odiado por outros. Um escritor captou bem esta concepção quando escreveu:
Poucas pessoas na história do cristianismo têm sido tão supremamente estimadas ou tão mesquinhamente desprezadas quanto João Calvino. A maioria dos cristãos, dentre os qual  grande parte dos protestantes, conhece apenas dois aspectos a respeito  dele: acreditava na predestinação e ordenou que Serveto fosse queimado vivo. Desses dois fatos, ambos verdadeiros, emerge a caricatura usual de Calvino como o grande inquisidor do protestantismo, o tirano cruel de Genebra, uma figura rabugenta, rancorosa e completamente desumana. [13]
João Calvino nasceu em Noyon, na Província da Picardia, na França, na fronteira dos Países Baixos, em 1509. Seu pai, Gerard Cauvin, era advogado que trabalhou para o cônego desta cidade, e sua mãe, Jeanne de La Franc, era uma mulher muito piedosa. Batizado na tradição católica teve como padrinho Jean Vatine, cônego da Catedral em Noyon. Foi enviado para estudar Teologia em Paris, onde estudou latim e humanidades no Collège de la Marche e teologia no Collège de Montaigu,[14]. Ele era conhecido como “O professor de Sagradas Letras”[15]. Um mestre singular, um grande pregador. Era um homem dedicado aos estudos, e muitos no seu tempo “o tinham já em admiração, pela erudição e zelo que nele se percebiam”[16]
A conversão de Calvino se deu em 1533, provavelmente sob a influência do seu primo Robert Olivétan, e a respeito deste fato disse:
Deus, pela secreta orientação de sua providência, finalmente deu uma direção diferente ao meu curso. Inicialmente, visto eu me achar tão obstinadamente devotado às superstições do papado, para que pudesse desvencilhar-me com facilidade de tão profundo abismo de lama, Deus, por um ato súbito de conversão, subjugou e trouxe minha mente a uma disposição  suscetível, a qual era mais empedernida em tais matérias do que se poderia esperar de mim naquele primeiro período de minha vida. Tendo assim recebido alguma experiência e conhecimento da verdadeira piedade, imediatamente me senti inflamado de um desejo tão intenso de progredir nesse novo caminho que, embora não tivesse abandonado totalmente os outros estudos, me ocupei deles com menos ardor.[17]
O reformador João Calvino teve grande progresso na tarefa da Reforma em Genebra porque as suas “crenças sobre a Palavra de Deus e a centralidade das Escrituras na vida da Igreja definiam sua pregação muito antes de ele levantar-se para expor a Palavra.”[18]. Timothy George assegura que “a grande realização de Calvino foi tomar os conceitos clássicos da Reforma (sola gratia, sola fide, sola scriptura) e dar-lhes uma exposição sistemática, que nem Lutero e nem Zuínglio  jamais fizeram, adaptando-os ao contexto civil de Genebra”.[19]
Deve-se entender que nesta época havia uma crise completa de autoridade na sociedade da época, e a Igreja que era orientadora dos padrões sociais e religiosos estava sem autoridade, o Romanismo da Igreja havia sido questionado de forma magistral pela Reforma Protestante. Então onde encontrar uma fonte de autoridade e que fosse suficiente para oferecer respostas às ansiedades e indagações de uma época tão conturbada?
Nos dias de Calvino, o principal assunto de controvérsia era a autoridade da igreja. As tradições da igreja, os decretos do Papa e  as decisões dos conselhos eclesiásticos precediam a verdade bíblica. Entretanto, Calvino permaneceu firme, sobre a pedra angular da Reforma - Sola Scriptura, ou "somente a Escritura". Ele acreditava que as Escrituras eram o verbum Dei - a Palavra de Deus - e que somente ela podia regulamentar a vida da igreja, e não papas, conselhos ou tradições. Sola Scriptura identificou a Bíblia como autoridade única sobre a igreja de Deus, e Calvino abraçou essa verdade de todo  o coração, insistindo que a Bíblia é a competente, inspirada, inerrante e infalível Palavra de Deus.[20]

            Timothy George lembra-nos que “Calvino acreditava que a Bíblia era a ‘escola do Espírito Santo’. Seus escritores foram instrumentos, órgãos, amanuenses do Espírito Santo.”[21] O próprio Calvino ensina, comentando Salmo 19.7, que a Palavra de Deus revelava o pleno conhecimento de Deus: “o salmista agora se volve para os judeus, a quem Deus havia comunicado um conhecimento mais pleno por meio de sua palavra”.[22]




[1] SCHWERTLEY, Braian. M. Sola Scriptura e o Princípio Regulador do Culto. Tradutor: Marcos Vasconcelos. São Paulo: Editora os Puritanos, 2001, p.12..
[2] Apud, BEEKE, Joel. R. Vivendo para a Glória de Deus – Uma Introdução à Fé Reformada. Tradutor: Francisco Wellignton Ferreira. São Paulo: Editora Fiel, 2010, p. 149.
[3]  SCHWERTLEY, Braian. M. Sola Scriptura e o Princípio Regulador do Culto. Tradutor: Marcos Vasconcelos. São Paulo: Editora os Puritanos, 2001, p.12
[4] ANGLADA, Paulo R. B. Sola Scriptura – A Doutrina Reformada das Escrituras. São Paulo: Editora Os Puritanos, 1998, p.73.
[5] SCHWERTLEY, Braian. M. Sola Scriptura e o Princípio Regulador do Culto. Tradutor: Marcos Vasconcelos. São Paulo: Editora os Puritanos, 2001, p.1.
[6] CAIRNS, Eearle. E. O Cristianismo através dos Séculos – Uma História da Igreja Cristã. Tradução: Israel Belo de Azevedo; Valdemar Kroker. São Paulo: Vida Nova, 2008, p. 259.
[7] GEORGE, Thimothy. Teologia dos Reformadores. Tradução: Gérson Dudus; Valéria Fontana. São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 53.
[8] Ibid, p.81.
[9] GONZÁLEZ, Justus L. Uma História Ilustrada do Cristianismo. Tradução: Itamir Neves de Souza. São Paulo: Vida Nova, 2011, p.38.
[10] GEORGE, Thimothy. Teologia dos Reformadores. Tradução: Gérson Dudus; Valéria Fontana. São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 82.
[11] LATOURETTE, Kenneth Scott. Uma História do Cristianismo, Volume 2. Tradução: Heber Carlos  de Campos. São Paulo: Hagnos 2006, p.969-670.
[12] CAIRNS, Eearle. E. O Cristianismo através dos Séculos – Uma História da Igreja Cristã. Tradução: Israel Belo de Azevedo; Valdemar Kroker. São Paulo: Vida Nova, 2008, p. 260.
[13] GEROGE, Timothy. Teologia dos Reformadores.Tradução: Gérson Dudus e Valéria Fontana. São Paulo: Editora Vida Nova, 1994, p.167.
[14] FERREIRA, Wilson de Castro. Calvino: Vida, Influência e Teologia, São Paulo: Luz Para o Caminho,1998, p. 41.
[15] HALSEMA, Thea B.  Von. João Calvino Era Assim.   São Paulo: Editora Os Puritanos, 2009, p.68.
[16] BEZA, Theodoro de. A Vida e a Morte de João Calvino. Tradução: Waldyr Carvalho Luz. São Paulo: Editora Luz para o Caminho, 2006, p.11.
[17] CALVINO, João. Comentário sobre o Livro de Salmos, Volume 1. Tradução: Valter Graciano Martins, São Paulo: Editora Fiel, 2009, p.31.
[18] LAWSON, Steven. A Arte Expositiva de João Calvino. Tradução:Ana Paula Eusébio Pereira. São Paulo: Editora Fiel,2008, p.33-34.
[19] GEORGE, Timothy. Teologia dos Reformadores. Tradução: Gérson Dudus e Valéria Fontana. São Paulo: Editora Vida Nova, 1994, p.167.
[20] LAWSON, Steven. A Arte Expositiva de João Calvino. Tradução:Ana Paula Eusébio Pereira. São Paulo: Editora Fiel,2008, p 34.
[21] GEORGE, Timothy. Teologia dos Reformadores. Tradução: Gérson Dudus e Valéria Fontana. São Paulo: Editora Vida Nova, 1994, p.167; “Por que a Escritura é a escola do Espírito Santo  na qual nada tem deixado coisa alguma que não seja necessária e útil conhecer, nem muito menos se ensina mais do que é necessário saber.” (CALVINO, Juan. Instiución de La Religión Cristiana. Tradução: Cipriano de Valera.  Barcelona:1999, Livro III, Capítulo 21, seção 3.)
[22] CALVINO, João. Comentário sobre o Livro de Salmos, Volume 1. Tradução: Valter Graciano Martins, São Paulo: Editora Fiel, 2009, p.379. 

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